Por: Rosh Marlon Troccolli
Do site: http://www.judaismonazareno.com
Introdução:
A coleção de livros e cartas conhecidos no meio judaico nazareno como Ketuvim Notserim ou Escritos Nazarenos, vulgarmente denominado pelos cristãos de “novo testamento”, formam uma coleção de escritos deixados pelos seguidores de Yeshua e denominados pelos historiadores como testemunhas oculares pois, supõe-se terem sido escritos por aqueles que conviveram ou mesmo viveram no mesmo período (contemporâneos) dos discípulos do Messias.
O próprio Yeshua não escreveu absolutamente nada sobre sua vida e seus ensinos, tarefa assumida por seus talmidim. É pouco provável que os primeiros discípulos fossem alfabetizados tendo em vista que o índice de alfabetização no Império Romano por volta do primeiro século era baixíssimo. Muito mais na província da Galileia, uma das mais distantes e pobres de todo o Império. Nesta região onde Yeshua cresceu e pregou, ser alfabetizado era um luxo de poucas pessoas, algo restrito a nobreza e ao alto clero.
Portanto, nas comunidades nazarenas do primeiro século as taxas de alfabetização eram baixíssimas, pois os primeiros seguidores do Messias vinham em sua maioria das classes mais pobres e menos letradas.
Por isso, as narrativas históricas que levam o nome de “evangelho” cuja autoria carregam nomes de alguns dos discípulos do Messias, nunca foram escritos por eles próprios, esta era uma forma de alguns autores anônimos darem créditos aos seus escritos, todavia, isso não invalida a autenticidade dos Escritos Nazarenos visto que, terem sido narrativas que contam relatos orais dos acontecimentos da vida e obra de Yeshua contadas por pessoas denominadas de testemunhas oculares.
As Primeiras narrativas:
As primeiras narrativas a serem escritas foram às Epístolas de Shaul haSheliach, denominadas pelos cristãos de “cartas paulinas”, estas foram escritas muito antes dos chamados evangelhos, aproximadamente uns 20 anos depois da morte de Yeshua. Shaul era um homem bastante instruído, segundo o relato bíblico ele foi ensinado por um ilustre líder fariseu de nome Gamaliel, vejamos o relato de Atos:
“Eu sou judeu, nascido em Tarso da Cilícia, mas educado nesta cidade, aos pés de Gamaliel, instruído segundo o rigor da Lei de nossos ancestrais, zeloso por D’us, assim como todos vós sois neste dia” (Atos 22:3).
A existência de Gamaliel como respeitado e influente Raban (título superior ao de rabino) é confirmado pela Míxena que diz a seu respeito:
“Quando Raban Gamaliel, o ancião, faleceu, cessou a glória da Torah, e pereceram a pureza e a santidade” (Sotah 9:15).
Portanto, Shaul era um homem culto por ter estudado com alguém de elevado nível entre os judeus, ele teria todas as condições de escrever sobre a vida de Yeshua, mas ele se limitou a redigir apenas algumas cartas de aconselhamentos endereçadas a algumas Comunidades nazarenas da época. É válido se ressaltar que, o fato de Shaul nunca ter conhecido pessoalmente Yeshua não o desqualifica como um autor ilibado, visto que, ele ter conhecimento sobre as narrativas orais da vida de Yeshua que já circulavam no meio nazareno.
Quantos são os chamados “evangelhos”?
Embora a igreja romana tenha escolhido apenas quatro para compor a chamada coleção dos “evangelhos” considerando-os canônicos, porém, haviam outros, dentre os quais podemos citar o "Evangelho de Pedro", "Evangelho de Nicodemos", "Evangelho de Tomé", "Evangelho de Filipe", "Evangelho da Verdade", "Evangelho de Judas" (Iscariote), "Evangelho de Maria Madalena" entre outros.
Sempre lembrando que todos estes chamados "evangelhos" só possuem cópias tardias em grego, ou seja, as cópias que se tem deles são do ano 200 E.C. em diante. Nenhuma destas cópias dos evangelhos são da mesma época dos discípulos, entretanto, isto não significa que não haviam os originais escritos no período dos discípulos, o problema é que eles não foram encontrados ainda.
Presume-se que tais originais se perderam com o tempo pelo fato de seus autores terem usado um material (pergaminho) barato e de pouca durabilidade, também há quem acredite que estes originais estejam super guardados e que um dia serão revelados, ou ainda, na pior das hipóteses, a igreja de Roma os tenha destruído após ter feito várias cópias dos mesmos pois, havia uma ordem do imperador Constantino que se destruíssem toda e qualquer escritura que fosse contrária às que já haviam sido “canonizadas” pelos concílios ecumênicos.
Em que língua foram escritos os Ketuvim Notserim??
Este é um assunto muito polêmico no meio acadêmico, há questões e questões a serem levados em conta, alguns historiadores afirmam que os Escritos Nazarenos foram copiados originariamente em hebraico e aramaico, tendo em vista o testemunho de pessoas que viveram poucos séculos depois dos discípulos de Yeshua e que declararam haver pelo menos um evangelho escrito em hebraico, vejamos estes testemunhos:
Eusébio de Cesareia (3º século): “...de todos os discípulos, Mateus e João são os únicos que nos deixaram comentários escritos e, mesmo eles, foram forçados a isso. Mateus tendo primeiro proclamado o evangelho em hebraico, quando estava para ir também às outras nações, colocou-o por escrito em sua língua natal e assim, por meio de seus escritos, supriu a necessidade de sua presença entre eles."
Orígenes (2º século): “Segundo aprendi com a tradição a respeito dos quatro evangelhos, que são os únicos inquestionáveis em toda Igreja de Deus em todo o mundo. O primeiro é escrito de acordo com Mateus, o mesmo que fora publicano, mas depois apóstolo de Jesus Cristo, o qual, tendo-o publicado para os convertidos judeus o escreveu em hebraico"
Irineu de Lyon (2º século): “Mateus, de fato, produziu seu evangelho escrito entre os hebreus no dialeto deles..."
Jerônimo (4º século): “Mateus, também chamado Levi, e que de publicano se tornou apóstolo, primeiro de tudo produziu um Evangelho de Cristo na Judeia, na língua e nos caracteres hebraicos, para benefício dos da circuncisão que haviam crido, Não se tem suficiente certeza de quem o traduziu mais tarde para o grego. Ademais, o próprio em hebraico está preservado até hoje na Biblioteca de Cesareia que o mártir Pânfilo ajuntou tão diligentemente. Os judeus nazarenos, que usam este volume, na cidade Síria de Bereia, permitiram-me também copiá-lo” (Obra de Jerônimo: “De Viris Inlustribus” [A Respeito de Homens Ilustres] – Capítulo III – Tradução do Texto Latino editada por E. C. Richardson e publicado na série – Texte und Untersuchungen zur Geschichte der Altchristlichen Literature — Volume, 14, Leipzig, 1896, páginas 8 e 9.)
Todos estes testemunhos são unânimes em afirmar que havia pelo menos um evangelho escrito em sua língua original hebraica, sabemos que o evangelho de Mateus não foi o primeiro a ser escrito e que, segundo os historiadores, os autores do evangelho de Mateus e de Lucas se utilizaram das narrativas do evangelho de Marcos para compor seus escritos, sendo assim, se foi produzido um evangelho em língua hebraica baseando-se em uma outra narrativa, com certeza o livro do qual o escritor se baseou também estava escrito em hebraico.
Assim concluímos que, se o Evangelho de Mateus, que foi baseado no Evangelho de Marcos foi escrito em hebraico, logicamente que o Evangelho de Marcos bem como o de Lucas muito provavelmente tenham sido escritos também originariamente em hebraico ou mesmo no aramaico. Válido é se ressaltar que atualmente sabemos que Lucas, autor do evangelho que leva o seu nome, era de origem siríaco de Antioquia (ver Eusebius; EccL. Hist. 3:4) e que escreveu seu evangelho justamente endereçado a um amigo seu de nome Theophilus que era um Judeu que foi sacerdote do ano 37 a 41 E.C. (ver Flavio Josefus; Ant. 18:5:3), também de origem siríaco convertido ao judaísmo nazareno, assim como Lucas o era, todos os sacerdotes falavam e escreviam em hebraico e aramaico, sendo assim, obviamente, sua linguagem nativa era o siríaco, isto é, um dialeto aramaico.
Os Ketuvim Notserim estão no mesmo patamar que o Tanach??
Aqui, mais uma vez nos deparamos com um assunto polêmico, não para nós, judeus nazarenos que vivenciamos o contexto hebraico e não sofremos a influência teológica de Roma, mas para os cristãos e também para aqueles que vieram para a Teshuvá egressos do cristianismo.
É do conhecimento de todos que, quando a igreja romana juntou, escolheu, elaborou, adulterou e canonizou uma coleção de livros ao qual deram o nome de “Novo Testamento”, seu objetivo único era fazer com que esta “nova” coleção de escritos tomasse o lugar do Tanach hebraico entre os cristãos, não foi a toa que o bispo Marcião criou esta nomenclatura “novum testamentum” fazendo com que Jerônimo classificasse o Tanach hebraico de “velho testamento” em uma clara demonstração de que o “novo” veio para substituir o “velho”.
Porém fica a pergunta: Era esta a proposta dos discípulos e, de maneira mais restrita, a do apóstolo Shaul? De considerar o Tanach (a Torah, os Profetas e os Escritos) como já superados e ineficazes?? Claro que não, todas as vezes em que Yeshua e seus discípulos faziam menção das Escrituras, estavam se referindo ao Tanach hebraico e não a um suposto “novo testamento” que nem existia na época.
É válido também se ressaltar que, em nenhuma de suas cartas Shaul se refere a elas como “escrituras inspiradas”, muito ao contrário, ele chama sim de inspiradas e sagradas as Escrituras do Tanach, vejamos:
“E que desde a tua infância conheces as Sagradas Escrituras, que podem fazer-te sábio para a salvação, pela fé que há no Messias Yeshua. Toda a Escritura divinamente inspirada, é proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça; Para que o homem de D’us seja perfeito, e perfeitamente instruído para toda a boa obra” (2 Timóteo 3:15-17)
Da mesma forma o apóstolo Pedro também se refere ao Tanach como divinamente inspirados:
"Nenhuma Profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque a Profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os homens santos de D’us falaram inspirados pela Ruach haKodesh (espírito Santo)" (2 Pedro 1:20-21)
Os cristãos apegam-se a um único texto mal interpretado de Pedro para afirmarem que os escritos de Shaul também estão em pé de igualdade com as Escrituras do Tanach, vamos analisar este texto na íntegra:
“Tenham em mente que a paciência de nosso Senhor significa salvação, como também o nosso amado irmão Shaul lhes escreveu, com a sabedoria que lhe foi dada. Ele escreve da mesma forma em todas as suas cartas, falando nelas destes assuntos. Suas cartas contêm algumas coisas difíceis de entender, as quais os ignorantes e instáveis torcem, como também o fazem com as demais Escrituras, para a própria destruição deles” (2 Pedro 3:15-16)
Vamos considerar 2 pontos:
a) Pedro não disse em momento algum que os escritos de Shaul eram inspirados, ao contrário, ele disse sim que Shaul escreveu com a SABEDORIA que lhe foi dada e não com a “inspiração” que lhe foi dada. Pedro deixa bem claro que Shaul escreveu seus escritos porque era um homem sábio e culto, porque tinha sido instruído aos pés de um grande Rabbi e que por isso tinha a sabedoria para escrever conforme a Torah e o Tanach, até hoje os judeus chamam para os escritores do Talmude de “nossos sábios”, uma expressão muito comum no meio judaico e que Pedro a usou corretamente.
b) Pedro disse que os ignorantes torcem os escritos de Shaul da mesma forma como eles torcem as Sagradas Escrituras para destruição deles, aqui, Pedro está fazendo uma comparação de ATITUDE e não uma comparação de escrituras, é muito tolo o raciocínio de quem pensa que Pedro está pondo os escritos de Shaul em pé de igualdade com o Tanach, pois, por exemplo, quem torce as minhas palavras vai torcer também as palavras de qualquer um e, até mesmo as de D’us, é exatamente neste sentido que Pedro se referiu.
Um judeu precisa do “novo testamento” para reconhecer Yeshua?
A resposta bíblica é NÃO. O próprio Messias Yeshua disse que, quem quisesse saber sobre ele que pesquisasse na Torah, nos Profetas e nos Escritos, ou seja, no Tanach, vejamos:
“E começando por Moisés, passando por todos os Profetas, explicou-lhes o que constava a respeito dele em todas as Escrituras.” (Lucas 24:27)
“E disse-lhes: Foi isso que eu lhes falei enquanto ainda estava com vocês: Era necessário que se cumprisse tudo o que a meu respeito estava escrito na Torah dada a Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Então lhes abriu o entendimento, para que pudessem compreender as Escrituras” (Lucas 24:44-45)
“Vocês devem estudar cuidadosamente as Escrituras, porque julgam que nelas vocês têm a Vida Eterna. E são as próprias Escrituras que testemunham a meu respeito” (João 5:39)
Como vimos pelo próprio Messias, um judeu não precisa do “novo testamento” para reconhecer Yeshua como Messias, aliás, todos os judeus que se tornaram nazarenos se convenceram porque viram a figura do Messias exposta nas Escrituras do Tanach.
Conclusão:
Os judeus nazarenos costumam classificar as Escrituras da seguinte maneira: *Escrituras Ditadas, *Escrituras Inspiradas e *Narrativas históricas. A Torah Sagrada forma o grupo de Escrituras que foram ditadas pelo próprio Eterno, Adonai falava e Moisés escrevia, por isso costumamos dizer que a Torah não foi inspirada mas sim Ditada pelo próprio Eterno. Os Escritos Proféticos formam o grupo de Escrituras Inspiradas pela Ruach do Eterno, Adonai enviava sua emanação espiritual e os profetas escreviam por inspiração divina. Porém, os Ketuvim Notserim constituem-se em Narrativas Históricas sobre a chegada do Messias e seu ministério messiânico na terra, eles são o Testemunho do verbo que se tornou carne e habitou entre nós.
Os Escritos Nazarenos possuem o seu valor histórico e espiritual, portanto, devem ser considerados e respeitados como parte importante no processo de Teshuvá, pois narram o surgimento da primeira Comunidade nazarena, o Yisrael Remanescente que iria fazer Teshuvá segundo o profeta Isaías(ver Isaías 10:22) e mostra como viviam os nossos irmãos do passado, é o único documento histórico que temos sobre o nosso passado, mesmo que depois de tantas adulterações, o que implica em não ser confiável como regra de Fé e doutrinária, ainda assim testificamos sua autenticidade original.
Com a ajuda do Espírito do Eterno conseguimos vislumbrar a essência hebraica e o pensamento judaico por trás de tantas adulterações e acréscimos que infelizmente eles sofreram, por isso, é um ERRO GRAVE despreza-los em detrimento do que fizeram com eles, sabemos que Adonai não se deixa escarnecer e que por isso, toda a verdade virá à tona, e enfim, teremos de volta os Escritos dos nossos sábios em toda a sua pureza original na qual foram escritos.
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